terça-feira, 15 de junho de 2010

Eu, etiqueta, de autoria de Carlos Drummond de Andrade


Meu blusão traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca, nesta vida.

Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,

minha gravata e cinto e escova e pente,

meu copo, minha xícara,

minha toalha de banho e sabonete,

meu isso, meu aquilo,

desde a cabeça ao bico dos sapatos,

são mensagens,

letras falantes,

gritos visuais,

ordens de uso, abuso, reincidência,

costume, hábito, premência,

indispensabilidade,

e fazem de mim homem-anúncio itinerante,

escravo da matéria anunciada.

Não sou – vê lá – anúncio contratado.

Eu é que mimosamente pago

para anunciar, para vender

em bares festas praias pérgulas piscinas,

e bem à vista exibo esta etiqueta

global no corpo que desiste

de ser veste e sandália de uma essência

tão viva independente,

que moda ou suborno algum a compromete.

Hoje sou costurado, sou tecido,

sou gravado de forma universal,

saio da estamparia, não de casa,

da vitrina me tiram, recolocam,

objeto pulsante mas objeto

que se oferece como signo de outros

objetos estáticos, tarifados.

Por me ostentar assim, tão orgulhoso

de ser não eu, mas artigo industrial.

2 comentários:

  1. A Verdade

    A porta da verdade estava aberta,
    mas só deixava passar
    meia pessoa de cada vez.

    Assim não era possível atingir toda a verdade,
    porque a meia pessoa que entrava
    só trazia o perfil de meia verdade.
    E a sua segunda metade
    Voltava igualmente com meio perfil.
    E os meios perfis não coincidiam.

    Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
    Chegaram ao lugar luminoso
    onde a verdade esplendia seus fogos.
    Era dividida em metades
    diferentes uma da outra.

    Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
    Nenhuma das duas era totalmente bela.
    E carecia optar. Cada um optou conforme
    seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

    Carlos Drummond de Andrade

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