quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Dois ótimos textos para reflexão

Religião do consumo


O "Financial Times", de Londres, noticiou que a Young & Rubicam, uma das maiores agências de publicidade do mundo, divulgou a lista das dez grifes mais reconhecidas por 45.444 jovens e adultos de 19 países. São elas: Coca-Cola (35 milhões de unidades vendidas a cada hora), Disney, Nike, BMW, Porsche, Mercedes-Benz, Adidas, Rolls-Royce, Calvin Klein e Rolex.

"As marcas constituem a nova religião. As pessoas se voltam a elas em busca de sentido", declarou um diretor da Young & Rubicam. Disse ainda que essas grifes "possuem paixão e dinamismo necessários para transformar o mundo e converter as pessoas em sua maneira de pensar".

A Fitch, consultoria londrina de design, no ano passado realçou o caráter "divino" dessas marcas famosas, assinalando que, aos domingos, as pessoas preferem o shopping à missa ou ao culto. Em favor de sua tese, a empresa evocou dois exemplos: desde 1991, cerca de 12 mil pessoas celebraram núpcias nos parques da DisneyWorld, e estão virando moda os féretros marca Halley, nos quais são enterrados os motoqueiros fissurados em produtos Halley-Davidson.

A tese não carece de lógica. Marx já havia denunciado o fetiche da mercadoria. Ainda engatinhando, a Revolução Industrial descobriu que as pessoas não querem apenas o necessário. Se dispõem de poder aquisitivo, adoram ostentar o supérfluo. A publicidade veio ajudar o supérfluo a impor-se como necessário.

A mercadoria, intermediária na relação entre seres humanos (pessoa-mercadoria-pessoa), passou a ocupar os pólos (mercadoria-pessoa-mercadoria). Se chego à casa de um amigo de ônibus, meu valor é inferior ao de quem chega de BMW. Isso vale para a camisa que visto ou o relógio que trago no pulso. Não sou eu, pessoa humana, que faço uso do objeto. É o produto, revestido de fetiche, que me imprime valor, aumentando a minha cotação no mercado das relações sociais. O que faria um Descartes neoliberal proclamar: "Consumo, logo existo". Fora do mercado não há salvação, alertam os novos sacerdotes da idolatria consumista.

Essa apropriação religiosa do mercado é evidente nos shopping-centers, tão bem criticados por José Saramago em A Caverna. Quase todos possuem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas. São os templos do deus mercado. Neles não se entra com qualquer traje, e sim com roupa de missa de domingo. Percorrem-se os seus claustros marmorizados ao som do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista. Ali dentro tudo evoca o paraíso: não há mendigos nem pivetes, pobreza ou miséria. Com olhar devoto, o consumidor contempla as capelas que ostentam, em ricos nichos, os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode pagar à vista, sente-se no céu; quem recorre ao cheque especial ou ao crediário, no purgatório; quem não dispõe de recurso, no inferno. Na saída, entretanto, todos se irmanam na mesa "eucarística" do McDonald’s.

A Young & Rubicam comparou as agências de publicidade aos missionários que difundiram pelo mundo religiões como o cristianismo e o islamismo. "As religiões eram baseadas em idéias poderosas que conferiam significado e objetivo à vida", declarou o diretor da agência inglesa.

A fé imprime sentido subjetivo à vida, objetivando-a na prática do amor, enquanto um produto cria apenas a ilusória sensação de que, graças a ele, temos mais valor aos olhos alheios. O consumismo é a doença da baixa auto-estima. Um são Francisco de Assis ou Gandhi não necessitava de nenhum artifício para centrar-se em si e descentrar-se nos outros e em Deus.

O pecado original dessa nova "religião" é que, ao contrário das tradicionais, ela não é altruísta, é egoísta; não favorece a solidariedade, e sim a competitividade; não faz da vida dom, mas posse. E o que é pior: acena com o paraíso na Terra e manda o consumidor para a eternidade completamente desprovido de todos os bens que acumulou deste lado da vida.

A crítica do fetiche da mercadoria data de oito séculos antes de Cristo, conforme este texto do profeta Isaías: "O carpinteiro mede a madeira, desenha a lápis uma figura, trabalha-a com o formão e aplica-lhe o compasso. Faz a escultura com medidas do corpo humano e com rosto de homem, para que essa imagem possa estar num templo de cedro. O próprio escultor usa parte dessa madeira para esquentar e assar seu pão; e também fabrica um deus e diante dele se ajoelha e faz uma oração, dizendo: "Salva-me, porque tu és o meu deus!" (44, 13-17).

Da religião do consumo não escapa nem o consumo da religião, apresentada como um remédio miraculoso, capaz de aliviar dores e angústias, garantir prosperidade e alegria. Enquanto isso, Ele tem fome e não lhe dão de comer (Mateus 25, 31-40).

Frei Betto é escritor, autor do romance "Hotel Brasil" (Ática), entre outros livros.




A Cloaca do Penta


Confesso que bebo Coca-Cola. Ao longo da minha existência, devo ter tido as entranhas lavadas por uma Baía da Guanabara de Coca-Cola. Um oceano de Coca-Cola. Um século de imperialismo de Coca-Cola. Eu obedeço as placas que ordenam ‘Beba Coca-Cola’. Eu bebo Coca-Cola. E é assim, dessa condição de um animal que bebe Coca-Cola e que pela Coca-Cola é bebido que eu posso afirmar: eu tenho nojo dessa campanha da Coca-Cola em prol do Brasil na Copa do Mundo. Tenho nojo sobretudo desse comercial em que Pelé aparece suado, pingando, com o uniforme do Santos e, claro, bebendo Coca-Cola. O Pelé bebe Coca-Cola.

O leitor, telespectador que é, há de ter visto a peça em questão. A câmera, no começo, mostra dois pés calçados em chuteiras. O esquerdo pisa o chão. O direito descansa sobre uma bola de capotão. A câmera vai subindo vagarosa, num movimento de ascensão. Entra uma voz declamando uma paráfrase pagã do ‘Pai Nosso’. O texto da publicidade, cujo autor eu desconheço, faz um trocadilho de pai com pés, algo como ‘pés nossos que estais no chão’, sei lá, e assim segue a propaganda que, mesmo não sendo samba, evolui em feitio de oração. Surge o rosto do rei, suor no rosto, Coca nos lábios. Perfeição. A tampinha de Coca-Cola entra em cena, então, e, apenas para não deixar a rima em ‘ão’, tem o formato de um coração. E lá vem o slogan, que tem algo a ver com paixão. É isso aí: a publicidade se apropria das cores da bandeira nacional, do Rei do futebol e do ‘Pai Nosso’ para construir o valor da marca que, não por acaso, nada tem de nacional, nem de esportiva e muito menos de católica. É isso aí: eu sinto nojo.

A publicidade é uma superindústria sem cerimônia que fabrica sentidos e significações para a vida vazia dos sujeitos do público. Para nós. Cada um de nós se completa nos signos que a superindústria da publicidade nos oferece. Antes, essas significações eram proporcionadas pela cultura; hoje, são confeccionadas na superindústria. Quem sou eu? Antes, eu seria um brasileiro, um fã do Pelé, um cristão que gostava de rezar o ‘Pai Nosso’. Hoje, eu sou um bebedor de Coca-Cola, como um ralo, como um bueiro, como o Pelé. Por isso a marca da Coca-Cola tem tanto valor, porque ela se infiltra nos nossos mecanismos identitários, com o perdão da expressão, e com o perdão da rima em ‘ão’, e aí, infiltrada, ela nos diz quem somos. Assim como a Nike, essa aí que fabrica marca, e não tênis, que é uma superindústria do imaginário, e não uma empresa do ramo de calçados. É essa lógica do imaginário superindustrial que explica parte do gozo experimentado pelo sujeito diante da TV: ele vê ali o sentido (fabricado) do que não tem sentido, o sentido de si mesmo. Ele se pacifica. O consumo das mercadorias começa, portanto, pelo consumo das imagens (das quais o sujeito precisa para se explicar a si mesmo). E o consumo das imagens, como se fosse trabalho, como se ver televisão fosse uma forma de trabalho, ainda que não remunerado, é o que completa a fabricação do valor das marcas.

Voltemos à Coca-Cola, coisa gasosa que eu juro que bebo. Voltemos no tempo, também. Voltemos a 1957, ano em que Décio Pignatari, um pioneiro da crítica de TV no Brasil, fez o seu poema ‘Cloaca’, superconcretamente subversivo: ‘beba coca cola/ babe cola/ beba coca/ babe cola caco/ caco/ cola/ cloaca’. Se adjetivos aí fossem admitidos, poderíamos dizer: supercloaca superindustrial. Voltemos, enfim, ao juízo que nunca tivemos. O imperativo ‘Beba Coca-Cola’ entra assim nos desvãos da fé religiosa, do patriotismo, da devoção a um rei, nem que seja um rei do futebol. E cria seu valor. Como se fôssemos todos idiotas, todos inimputáveis, todos obedientes bebedores de Coca-Cola. É assim e, no entanto, funciona.

Eugênio Bucci, Folha de S. Paulo, 09/06/02


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